Laura atravessa a Sala de jantar com um domínio completo sobre a localização de cada ambiente da Mansão dos Chiveras. Ela entra como um tsunami na cozinha visivelmente corada e ofegante. Ana, a empregada mais velha da casa deixa transparecer em suas novas rugas, um “quê” de preocupação com aquela menina, mas antes que possa de fato demonstrar, Laura já dispara suas vontades.
-O Cesar vai aparecer aqui hoje a qualquer hora...
Logo atrás de Laura, entra Soraya, uma bela mulata de silhueta esbelta, vestida com um uniforme preto, cabelos encaracolados presos por uma touca de renda transparente, em uma das mãos ela segura um balde com alguns produtos de limpeza e na outra uma vassoura e um rodo, mascando um chiclete a todo vapor.
-Com licença madame! -Mas a gente não deveria chamar o poderoso, de Dr.Cesar?
Soraya passa por Laura, atravessando a cozinha, indo até a lavanderia, Laura faz cara de pouco caso.
-O Dr.Cézar está vindo pra cá, ele vai chegar a qualquer momento. -Assim que ele passar pela portaria, eu quero ser a primeira a ser comunicada. -Fui bem clara?
Soraya não perde tempo e esticando o pescoço, mesmo agachada, ela grita da lavanderia com um sorriso sarcástico.
-Claro, como água, madama!
Desta vez Laura não deixa passar batido e se irrita com aquela insubordinação, a cara de espanto de Ana e o sorriso amarelo de Soraya, deixa Laura enfurecida.
-Eu não sou madame. -E não suporto esta ironia vinda de gente como vocês duas. -Me avisem quando o Cezar chegar, eu e a Dna.Teresa, estaremos na academia. -Sirva o café dela e o meu lá.
Antes que Laura se retire da cozinha, Ana se adianta com um ar de preocupação:
-Acordou cedo Laura!
Laura segurando a porta e de costas pra cozinha fecha os olhos com uma expressão enojada. Ela espera um pouco e se vira com um sorriso esnobe.
-É, fui comprar algumas medicações que estavam faltando.
Ana se volta para a pia ao ver o olhar de Laura contra ela.
-Ah, mas você poderia ter me dado à lista e eu pedia para o Marcos comprar...
Laura se silencia, ficando enfurecida com aquela ideia absurda, Soraya nota cada detalhe daquela atuação. Mas Laura não se intimida.
-Por acaso eu virei prisioneira desta casa?
Soraya termina de pegar alguns produtos na Lavanderia e passa rente a Laura falando de modo bem irônico.
-O que a Ana tá querendo dizer, mas não tem coragem, é que se alguma coisa acontecer com a Dna.Teresa, a responsabilidade seria todinha sua Dna.Laura. -Afinal, você passou a noite todinha fora, sei lá fazendo o quê!
Laura encara Soraya fuzilando-a com um olhar.
-Eu sei exatamente das minhas responsabilidades, diferente de vocês duas, que deveriam cuidar das suas obrigações, sem ficar cuidando daquilo que vocês não são pagas pra fazer.
Como de costume, Laura se vira nos calcanhares e sai visivelmente transtornada da cozinha resmungando:
-Insolentes!
Ana olha para Soraya, que ri baixinho, tapando a boca para não fazer muito barulho.
-O que deu nesta menina? -Será que ela tá com paixonite pelo Dr.Cézar?!
Soraya larga o balde no chão pegando um esfregão, rodopiando com ele como se fosse seu namorado.
-Vocês ainda não contaram para a madama? -Tadinha, vai sofrer tanto! -Vou chorar horrores quando ela quebrar a cara!
A voz de Soraya é de deboche e ironia. Ana volta a segurar a faca e cortar alguns legumes sobre uma tábua de cortar.
-E eu lá tenho tempo de ficar bisbilhotando quem entra e quem sai desta casa?! -Pelo amor de Deus! -E Soraya, vai terminar logo seu serviço, vai logo menina! -Eu heim! -Não tenho nada a ver com essas coisas não!
-Tomara que ela não só quebre a cara, mas que a estilhace por completo.
Ana olha para Soraya com um determinado olhar de reprovação ao que ela acabou de falar.
-Soraya! Soraya! -Não deseje aquilo que você não quer pra você.
Soraya já saindo da cozinha com seus apetrechos de limpeza desdenha:
-Ixi, Dna.Ana, a minha cota de quebrar a cara com o Dr.Cézar já passou!
Falando o nome de Cézar com muito sarcasmo enquanto a porta da cozinha se fecha atrás dela.
...
Laura já com seu uniforme alvíssimo, entra discretamente no quarto de Teresa, porém a mesma ainda que deitada, nota a entrada sorrateira de Laura como se fosse uma ladra em sua casa.
-Cometeu algum crime Laura?
Pega de surpresa, Laura fica paralisada diante da situação incomoda.
-Ah!!! -Bom dia Teres... Dna.Teresa!
Teresa, pouco acostumada a ficar interrogando as pessoas sobre isso ou aquilo, segue seu dia adiante.
-Me ajude a se levantar, traga minha cadeira por favor!
Laura rapidamente pega a cadeira de rodas e auxilia Teresa a se levantar, vestindo-a com um esvoaçante robe vermelho e a ajuda a se sentar na cadeira de rodas.
-A cadeira de Rodas não é mais uma necessidade Dna.Teresa!
-Eu sei Laura, é que ainda não me sinto muito confiante sem ela. -Meu café...?
-Pedi que a Ana servisse na academia, assim poderíamos adiantar um pouco a sessão. -Seus comprimidos.
Entregando para Teresa um pirex com alguns comprimidos e um copo de água. Teresa toma os medicamentos e se direciona para o banheiro.
-Conseguiu falar com o Cézar?
-Sim! Sim!!! -Ele disse hoje que passaria aqui mais tarde...
Laura percebe o erro que acabará de cometer, tarde demais. Teresa permanece em silencio tanto quanto Laura, com um olhar intimo de “eu já sabia”... Teresa entra no banheiro.
-Me espere na academia, eu vou em alguns minutos.
Laura se retira do quarto, fechando a porta e se encostando na parede fechando os olhos irritada consigo mesma.
-Burra! Burra! Como eu sou burra!
...
A Academia era um espaço bem convencional. Alguns instrumentos de peso, duas bicicletas ergométricas, duas esteiras, alguns sofás e poltronas, um bar equipados com geladeira e armários com alguns suplementos e bebidas energéticas, água e uma pia. O local era todo fechado por grandes janelas de Vidro. Laura já havia organizado tudo para a reabilitação de Teresa... Bolas, Pesos e um equipamento para fortalecer a musculatura das pernas. Teresa já parece exausta depois da primeira meia hora, Laura a leva ao limite, sempre tentando ir além.
-Vamos lá Dna.Teresa, a senhora não perdeu os movimentos das pernas, só está na cabeça da senhora.
Desta vez Teresa parece visivelmente irritada, mas na verdade, era só consequências da própria incapacidade.
-Se você conseguir convencer meu corpo e minha cabeça disto, prometo que coloco você no meu testamento.
Teresa mal percebe como aquelas palavras inocentes, aguçavam a mente de Laura, que se anima em continuar a fisioterapia e logo em seguida dando inicio a hidroginástica.
Ao terminarem a sessão, Laura tenta animar Teresa a ir andando, mas Teresa irredutível, se senta na cadeira de rodas onde ambas se direcionam para o quarto, alegando estar cansada.
Já no quarto, Laura ajuda Teresa a se arrumar na cama e se retira, deixando-a sozinha como tem se tornado costumeiro, sozinha e triste com a própria vida.
...
Laura abre a porta da cozinha com um certo receio, em sua concepção, ela nunca é bem recebida nesta parte da casa, todos parecem olha-la como um animal pronta para o abate. Esta vazia! Ela respira aliviada enquanto pega um copo alto e o leva até o filtro, totalmente distraída, ela vê o copo lentamente sendo preenchido pela água filtrada. Ao levar o copo até a boca, tão súbito como sua respiração se aliviou ela se assusta com uma pesada mão segurando seu pulso e a impedindo de tomar sequer um gole d’água, onde metade se esparrama pelo chão limpo.
-Soraya?!
Abusivamente séria, Soraya parece apertar cada vez mais o pulso de Laura.
-Você nunca esteve deste lado não é?
-Me larga sua louca!
Laura pega o copo com a outra mão e num esforço continuo se solta de Soraya.
-Do que você está falando?
Soraya cruza os braços e num sinal de extrema raiva continua mascando seu chiclete arduamente enquanto ergue uma das sobrancelhas.
-Da Alta Sociedade, você num é acostumada a conviver com eles né? -Mas eu vou te dar um conselho, sua baranga e de graça! -Eles usam a gente, abusam da gente e quando não querem mais, nos trocam por uma qualquer como trocam de roupa, entende? -E a gente que se ferra! -A gente é trocada...
Laura coloca o copo sobre a bancada, sua feição de espanto muda drasticamente para uma feição séria e irredutível.
-Substituíveis! -É a palavra certa pra gentinhas como vocês! -Eu sou roupa de grife meu bem. -E quanto ao seu conselho, dispenso, guarda ele pra você, alguma coisa me diz que você vai precisar dele primeiro do que eu.
Apesar de Laura e Soraya terem idades próximas uma da outra, suas mentalidades são bem distintas. Laura já com seus 22 anos de idade, enfermeira, cursando fisioterapia e uma vida inteira pela frente, já Soraya, 21 anos de idade, empregada domestica, cursando o segundo ano do colegial sem muitas perspectivas na vida. O que elas tem em comum? O desejo de uma rápida ascensão social que elas tanto admiram, uma ascensão rápida que poderia leva-las a uma queda mais rápida ainda. Seria até um desperdício de tempo apostar qual delas chegaria lá primeiro, afinal ambas estão destinadas a vencer na vida, seja de uma forma ou de outra. Neste momento Ana entra na cozinha.
-O que está acontecendo na minha cozinha?
Soraya e Laura dão as costas uma para a outra se retirando da cozinha cada uma por uma porta. Ana as vê como duas forças da natureza que de quando em vez, a gravidade as coloca em rota de colisão e quando se encontram, isto pode causar danos colaterais para elas mesmas. Não com estas palavras é claro!