A Sala do pequeno apartamento em São Paulo no Campo Limpo, tem uma goteira e rachaduras por todas as partes. A televisão está desligada, apenas a luz da minúscula cozinha está acesa. Sobre uma pequena mesa de canto, há vários cadernos e cada um deles etiquetados com nomes de alunos diferentes, Clarice está sentada numa baqueta corrigindo pacientemente cada um deles mantendo uma mão na testa enquanto a caneta está firmemente presa entre os dedos e que por vezes, a cada cem tiques do relógio angustiante de parede, ela retira o pequeno óculos esfregando os olhos já avermelhados, consequências de varias noites mal dormidas... O café no copo de vidro parece estar frio já há um bom tempo, ela se levanta para joga-lo na pia enquanto passa pela geladeira, onde varias contas estão presas por ímãs, ela vê o café escorrendo pelo ralo e pensa em como sua vida se parece muito com aquele café frio. Ao abrir o armário, ela encara com profundo desgosto a lata de sardinha e meia lata de óleo, ao fechar a porta do armário, a porta da Sala se abre com um pouco de violência exagerada. Um homem visivelmente bêbado atravessa a porta caindo de imediato no sofá esgarçado, Clarice observa aquele homem que se mantém inerte por alguns segundos naquele sofá e que logo a encara com desdém, ele se retorce como um animal para se levantar, passando por ela com um tedioso cheiro de bebida fétida abrindo a geladeira.
-Duas garrafas de vidro com água Gustavo. -A geladeira tem pouca serventia nesta casa...
O homem nem parece ouvi-la, resmungando alguma coisa impronunciável e gritando por outra improvável.
-Cadê a janta?
-Gustavo, pelo amor de Deus! O dinheiro que eu recebi só deu para pagar uma conta de luz e o aluguel atrasado, a conta de água está atrasada também e eu só consegui pagar a do mês retrasado! Gustavo você disse que ia me trazer o dinheiro da outra conta e da compra ainda hoje... Não tem nada pra...
-Tá, tá... Você é imprestável mesmo!
Clarice finge não ter ouvido abaixando a cabeça e passando a mão na barriga já bastante saliente.
-Você soube do Ricardo, do acidente? -Você tem alguma noticia?
-Caramba Clarice! Eu trabalho naquela merda de lugar a mais de dez anos Poxa! -Você é professorinha, mas é burra pra Caramba!
-Eu só queria saber se a Teresa está bem... Como ela está...
Gustavo fecha a porta da geladeira com uma raiva no olhar rindo com certa ironia.
-Mas você é foda mesmo mulher! -O que é, vai querer se aproveitar da morte do satanás pra tentar se dar bem ca tua chegada das antigas ou vai fazer inveja agora que tu tá prenha e ela é seca?
-Meu Deus Gustavo!!! -Você só enxerga o que não presta!
Clarice dá às costas as barbaridades profanadas da boca daquele ser mas ele insiste em continuar a vomitar abominações desnecessárias.
-Qual é Clarice! -Vai bancar a freira agora? -Todo mundo sabe que tu lambe o chão que aquela mulher pisa só pra se dar bem... -Amigas de infância o Caramba! -Foda-se! -Vai fazer logo o jantar que eu to morrendo de fome.
Voltando a olhar para aquele homem sem nenhuma vontade, Clarice sente o frio percorrer de suas entranhas até sua garganta, uma sensação de ódio enclausurado... Seu corpo treme diante daquelas palavras.
-Jantar? -Deixa eu ver se você consegue raciocinar por um segundo Gustavo: Qual parte de todas as contas atrasadas você ainda não entendeu?! -Eu prometi ao rapaz da Luz, que pagaria a conta amanhã... -O aluguel estava pendurado por três meses já... Meu deus! Santa Dna.Wilma, que está se segurando pra não nos despejar... -Enquanto você sai pra gastar o que não temos, com bebidas e sei lá mais o que com seus amigos, você vem me falar de jantar!!!
Toda a indignação de Clarice é despejada em sua face de uma só vez, mas o que esperar de um homem bêbado como Gustavo?
-Pelo amor de Deus Gustavo, que vida é essa?
Por um segundo Clarice pensou ter colocado um pouco de juízo na cabeça de um homem já formado, mas ela como educadora já deveria saber que isto é um tanto quanto impossível. Gustavo fica parado diante de Clarice com uma feição que é impossível distinguir, sono, pensativo, ironia, chapado... Quem disse que é possível prever as ações de um homem nesta situação?
-Qualé! -Achou que ia ter a vidinha de madame da tua amiguinha? -Desculpa ai, mas você deveria ter sido mais esperta e ter aberto as pernas pro doutorzinho primeiro ou pelo menos ser a amante daquele canalha... Não custava nada mesmo né, dar pro velho ao menos pagava nossas contas...
A fúria irrompe dos olhos de Clarice e em um instante ela avança contra Gustavo com uma mão aberta pronta para acertar a boca daquele alcoólatra, mas ele a segura pelo punho e levanta uma de suas mãos que pesadamente atinge a face de Clarice, ela sente a força daquele tapa, um estalo perto do queixo, o sangue expulsado da boca, pintando uma pequena parte da parede de vermelho sangue, ela gira e cai no chão... Clarice coloca as mãos na face atingida, a dor é mais emocional do que física, um ódio enraizado pode ser claramente visto no olhar dela, as lágrimas que rolam são de pura impotência...
-Oh caramba! -Clarice! Me perdoa, meu amor! Tá vendo o que você me faz fazer?
Gustavo tenta ajuda-la a se levantar, mas ela silenciosamente se nega a ser ajudada pelo seu violentador e com o mesmo silencio ela pega os cadernos e segue para o quarto trancando a porta. Gustavo olha para a situação com cara de pouca importância ligando a TV e se sentando no sofá esgarçado...
-É, vou dormir com fome nesta bagaça mesmo né?!
Na Televisão está passando uma reportagem sobre o acidente com os Chiveras que ocorreu em uma ponte na divisa dos estados do Rio de Janeiro e São Paulo, a repórter atesta que somente uma pessoa sobreviveu ao acidente, Teresa Chivera, e que seu estado é grave. Dois corpos foram localizados e resgatados até agora, mas não se sabe exatamente de quem são, acredita-se que um dos corpos seja do motorista dos Chiveras e o outro corpo, infelizmente se trataria do corpo do Dr.Ricardo Chivera, um dos homens mais influentes do país, marido de Teresa Chivera! Clarice escuta a Reportagem de dentro do quarto, deixando seu corpo se arrastar pela porta até o chão enquanto ela chora em silencio.
Assim como a Teresa sofre com um problema por um lado, Clarice sofre do outro, coitada dessas duas mulheres!!!!
Victor Morais Gold
Idade : 27 Cidade : São Bernardo do Campo
Assunto: Re: Espelhos || Capítulo 2 20.08.14 8:34
Clarice e Tereza sofrem mesmo. A primeira pelo marido que tem e a situação apertada. E a outra pela perda do marido. Não tá facil pra nenhuma das duas.
De fato galera, Felicidade precisa ser conquistada e estas duas mulheres terão de ralar pra conseguir um pouco do que esta palavra significa, e mesmo assim a vida as vezes nos da uma rasteira quando tudo parece perfeito!!!
Afinal, suas vidas irão se estilhaçar e elas terão que juntar os cacos!