Confesso que não me senti nem um pouco confortável em dividir aquele agradável barzinho com o namorado de Lisppet. Em instantes me veio em mente o que Otto deveria estar pensando da Dama de Gelo: uma vagabunda, cara de pau, traiçoeira, pervertida. Para minha surpresa não foi nada disto.
- Fico feliz por te encontrar aqui. – disse ele sorrindo para a loura. – Parece estar se divertindo. – E pelo incrível que pareça ele não disse isto em um tom irônico.
- Sim, estou. O Juan é uma ótima companhia! – E em uma ação repentina ela colocou as duas mãos no meu joelho esquerdo. Ou o direito, nem sei.
E enquanto ele conversava normalmente com ela e eu me mantinha calado bebendo, pude perceber que mesmo sem querer eu já fazia parte de um jogo. Um jogo dela.
Sempre que possível ela se esfregava em mim, sorria e me olhava, fazendo com que meu ego fosse relativamente elevado. Digo relativamente porque percebi que ela não possuía atração por mim. Ela não queria estar fazendo aquilo naquele momento. Fez porque o amava. Fez porque queria mostrar pra ele que estava bem, mesmo que ela não estivesse. Fez com uma adolescente de 15 anos faz pra provocar ciúmes no namorado.
Apesar da atitude infantil de Lisppet, preferi não me manifestar naquele momento. Que o jogo fosse jogado, da melhor maneira possível.
- O que tu fazes da vida Juan? – ele questionou.
- Sou arquiteto, estou tirando férias no momento. – menti descaradamente e pude ver Lisppet quase cuspir toda a vodka por cima dele.
- Bacana cara! – e seu riso era sempre muito simpático e enjoativo. Ele era mais baixo que eu e mais alto que Lisppet. E não tinha cara de fotógrafo.
- Ainda vais viajar? – interrompeu Lisppet.
- Amor, agora não.
- Só quero que tu desista deste projeto, desta viagem.
- Nós já conversamos sobre isto.
E no meio da conversa, gravei bem as palavras dele. “AGORA NÃO” era o que eu usava com a Izabel e por experiência própria posso dizer que foram as palavras mais fortes, cruas e intensas que eu poderia ter usado com ela. A perdi, assim como podia ver os olhos castanhos de Otto se perderem dos gigantescos lagos azuis existentes nos olhos da Dama de Gelo. Após minha análise, resolvi por fim me retirar.
Conversando com Otto em um tom mais sério, ela nem percebeu que eu me afastava. Paguei as bebidas e deixei-a a sós e sei que foi a melhor coisa que eu podia ter feito. Sabe por que? Porque ela não sentiu minha falta. Não lembrou que eu já não estava mais do seu lado. E esta invisibilidade, depois de uma noite tão agradável, era um sentimento muito ruim de sentir.
~x~
No bolso da calça alguns cents de euro. O hálito forte das bebidas foi outro fator importante que notei ao abrir a porta de casa. Passos flutuantes e indecisos até encontrar minha cama. Deitado, nada parecia fazer sentido. Ela tinha um namorado pelo qual ainda estava apaixonada, eu sentia falta da Izabel e havia flagrado interesse na incrível Lisppet Morales . E o álcool por fim me fez desmaiar, com a barriga levemente inchada de tanta bebida.
~x~
Mais um domingo, mais uma segunda e mais uma terça-feira se passaram corriqueiramente pela minha vida, sem nada a acrescentar e sem nada que marcasse o dia como digno de se recordar. Não me importei.
Fui até a padaria comprar dois pães, jamón y queso. Eu merecia um café descente. Preparei tudo com a maior tranquilidade do mundo e por um dia minha casa pareceu um local agradável de ambientar. Nada de assombrações, nada de tristezas. Cara, há quanto tempo não levantava com esta disponibilidade!
Posso dizer, inclusive, que foi um dos dias em que mais fiz coisas desde que o mundo desmoronou na minha cabeça. Cortei a grama, joguei o sofá para um lado, a mesa redonda da cozinha para outro. Passei um pano de uma forma errada e estranha, mas a casa ficou bem cheirosa até. Enfim um habitat natural.
De tardezinha, lá por umas 15h, a vontade de reorganizar a minha vida passou. Senti falta dela. Senti falta de conversar com ela em todos os finais de tarde, de segunda a sexta. Precisa saber como é que ela estava, queria que ela me perguntasse se eu estava bem. Mesmo que ela estivesse apaixonada por outro e mesmo que ela não fosse nada além do que minha psicóloga. Minha.
Liguei para a clínica 4 vezes e não obtive resposta. Durante todo o dia a capital da Espanha fora engolida por uma forte neblina. Imaginei que por isso A Dama de Gelo se camuflaria e não abriria a clínica. Insisti. Chegando próximo à Clínica percebi que o local estava com as luzes apagadas, cortinas fechadas. O vento forte tentava me derrubar e já ia me convencendo de que ela não estaria por lá. Até eu notar uma sombra passar do piso inferior para o de cima. A curiosidade me convenceu a forçar a porta chaveada.
- Lisppet! Tu estás aí? – e colei o ouvido na porta.
As luvas abafavam as minhas batidas na porta, mesmo assim a vontade de vê-la era maior. Após 3 batidas e 3 gritos chamando-a, enfim a porta foi aberta. Seus olhos estavam ofuscantemente encharcados de água. Sua face mais pálida que o comum e seus lábios secos.
A fragilidade daquela mulher gelada me fez sentir algo terrível por instantes. Meus 1m82cm se puseram a abraça-la desengonçadamente e, com um ar de conforto, ela escorou a cabeça em meu peito. Eu já imaginava o que podia ter ocorrido, só não pensava que o amor que ela sentia por aquele cara poderia ser tão forte a ponto de deixa-la parecendo um fantasma naquele dia frio.
Abraçando-a, encostei a porta e adentrei o local, como se fosse minha própria casa. Eu conhecia cada ponto da clínica, onde era mais agradável, onde era mais quente. Levei-a para cima e não precisei perguntar mais nada.
- Ele foi embora ontem! – e se pôs a chorar.
Sem reação, busquei um lenço para a mulher que há dias atrás estava me vendo chorar e me oferecendo seu ombro. Apesar de não entender os sentimentos e a fragilidade das pessoas, sabia que era minha hora de fazer algo pra ela. Não só por ela ter me escutado e me entendido, mas também por eu me sentir extremamente atraído por aquela deslumbrante incógnita.
