No capítulo anterior...
“Sem pensar muito, tirei o casaco e senti o vento frio querer rasgar a minha pele. Em seguida tirei o suéter e a manta que me cobria o pescoço. Quando menos pude esperar eu já estava somente de cueca e meias brancas em pleno inverno europeu. A cada peça de roupa que fora retirada, eu tive mais certeza de que minha existência no mundo havia sido inútil e por isso, eu merecia um final tranquilo e gelado, como deve ser no inferno.”Totalmente nu parei para pensar no que de fato eu estava fazendo. Matar-se não era uma maneira bonita de honrar estes 22 anos de vida que eu tinha, mas não encontrava nenhuma solução plausível para me reerguer. Eu não tinha família, eu não tinha ninguém para me apoiar.Ninguém por quem realmente valesse a pena viver. E certamente era por isso que eu estava pelado colocando um de meus pés naquele lago extremamente gelado. Só queria que a minha amiga ‘hipotermia’ chegasse logo. Queria morrer de uma vez pra evitar sofrer ainda mais.
Por fim coloquei meu pé esquerdo na água e os deixei de molho por mais ou menos um minuto. Senti minha circulação sanguínea congelar lentamente. Claro que era coisa da minha cabeça, ainda seria muito mais torturado pelo frio. Mas valeria a pena, tratando-se destes últimos momentos.
Fechei os olhos, respirei o ar gélido e denso. De imediato enxerguei um caixão branco na frente de um fundo totalmente escuro. Em seguida enxerguei o carro dos meus pais capotando em 2009 e uma criança chorando. E por fim uma mulher vestida de branco na frente de um fundo cor de gelo. Abri os olhos rapidamente e voltei à realidade.
A noite chuvosa e as nuvens escuras. A praça enorme e com pouca iluminação. E o lago gelado. O lago gelado que afagava faceiro meu corpo naquela noite. Eu já estava com água até a cintura e pelo incrível que pareça não pensei em sair dali, botar a roupa e voltar pra casa. Estava feliz em sentir aquela dor e o motivo disto era simples: a dor não envolvia meus pais, minha mulher e sequer bebês.
Aquela era a altura máxima do lago e eu pude por fim acabar com aquilo. Fui sentando na água e senti-a puxar meus ombros até ficar acima deles. Meus lábios já estavam completamente rachados e meus movimentos se tornavam escassos. Minha respiração tornou-se ofegante mediante aquela serração e pude observar uma gota de sangue cair sobre o lago. Coloquei a mão direita no nariz e para minha surpresa lá estava a fonte daquele pingo. Meu sangue havia afinado por conta do frio. Meu queixo parecia ter vida própria, tremendo desesperadamente. E minha boca pôde provar o gosto amargo da morte naquela noite.
Fui perdendo os sentidos aos poucos e fiquei tonto. Meus olhos insistiram em derrubar mais algumas lágrimas e minha cabeça começou a doer. Marteladas interrompiam qualquer pensamento que eu iniciasse e depois disto, não vi mais nada. Toda a mínima luz existente naquela noite me abandonou e a escuridão (ou o inferno, como prefiro chamar) tomou conta de mim e de meu corpo.
~ x ~
- Rei, ji chima naquinare moiduhds! - foi a primeira coisa que ouvi sem entender bulhufas. O segundo grito sim, me invadiu o cérebro.
- SAI DAÍ!!!!
Por que eu deveria sair, de onde? Abri o olho direito e vi o lago. Veio-me em mente o frio, a morte e meu bebê. Quando me dei por conta percebi que alguém me chamava desesperadamente. Pisquei demoradamente e sem forças. Quando senti aquelas mãos segurarem meus braços...
Ela estava vestindo um cachecol branco e um casaco grande igualmente branco. Não consegui verificar o restante de sua vestimenta, pois voltei todo o resto de atenção existente para o seu rosto. Uma das minhas poucas qualidades era este poder de observação, esta atenuação aos detalhes. Naquele instante, parecia que a faculdade de arquitetura tinha valido a pena, pois conseguia ver nela um projeto com ótimo planejamento e estruturação.
Seu cabelo era bem comprido, loiro platinado e estava protegido somente na parte superior, por uma toca. Sua pele era bem clara e por isso dava pra perceber que suas bochechas estavam levemente coradas. Seus lábios tinham uma forma interessante e chamativa, mesmo sem serem muito carnudos. E por fim, seus olhos. Seus olhos atingiram os meus como se fossem enormes faróis de carro iluminando os locais mais escuros e menos prováveis da Espanha. Eram lindos faróis azuis fluorescentes que me cegaram momentaneamente, até que eu lembrasse de que o meu corpo estava praticamente congelado e minha respiração compacta.
Quando senti aquelas mãos segurando meus braços, senti o que era ser uma pessoa gelada de verdade. Ela aparentava estar quente, parecia confortável e conformada com o frio, mas suas mãos eram muito mais glaciais do que aquele lago com sereno. Senti vontade de pedir para que ela não me puxasse, porém sua delicadeza conseguiu me deixar vulnerável por alguns instantes. Será que era um sinal de que eu não deveria morrer?
Meus ossos pesados arrastaram o chão por alguns metros. Ouvi ela se indagar enquanto ofegava ao me carregar.
- Meu Deus! O que este homem faz pelado no lago a esta hora?
Fui arrastado por ela até a grama da Plaza España e em seguida ela jogou um pano por cima de mim.
Depois disto a dor de cabeça voltou. As marteladas voltaram. E eu vi o mundo girar em alta velocidade... Ouvi uma sirene se aproximar, barulho de pessoas inconformadas em ter que ajudar. E Ela, onde estava ela? A Dama de Gelo que me acolhera e me confortara, eu precisava xingá-la. Precisava pedir para que ela me deixasse morrer. Precisava saber por que ela resolvera depositar tamanha quantidade de luz em um ser tão vazio e obscuro.