A Dama de Gelo || Capítulo 02

Após ficar horas na frente do hospital, resolvi por fim entrar no quarto em que Izabel estava descansando. Ela estava com o cabelo bagunçado, com a face pálida e com os olhos inchados de tanto chorar. Dona Lucía segurava firmemente suas mãos, consolando-a. Inutilmente, posso garantir.

- Vou deixá-los conversar a sós. Qualquer coisa me chama Juan! – disse a mãe dela com ar melancólico.

Esperei que ela fechasse a porta e, totalmente sem graça, me aproximei de Izabel. Um impulso fez com que eu sentasse ao seu lado na cama e a abraçasse, compartilhando de uma compaixão e de um companheirismo jamais sentido por nenhum de nós dois antes. Agora parecíamos combinar, parecíamos um casal que se entendia. É uma pena que a situação, por assim simplificar, não era nada generosa com nenhum de nós dois.

- Acabou. – disse ela desabando em choro.

- Acabou o quê?

- Nós dois podemos enfim tomar nossos rumos. Espero que tu sejas muito feliz, o tanto quanto eu não fui capaz de te fazer...

- Iza, não vamos falar disto agora.

- Eu vou sair do hospital amanhã, pego minhas coisas e vou pra casa da minha mãe.

Calei-me diante suas palavras. Aquele era o sinal de que ela estava terminando comigo? Titubeei.

- Quem sabe a gente dá uma chance pra recomeçar... Tu não sabes o quanto eu estou mal pela perda do nosso filho.

- Há dias atrás tu não queria este filho.

- Eu sempre o quis. Só não da maneira convencional, dividindo e compartilhando sentimentos...

- Juan, não precisa justificar nada. Eu to mal. – e parou para engolir o choro, por alguns segundos. – Preciso me recuperar disto tudo e não vou conseguir te tendo por perto. Eu te amei tanto, quis tanto que a gente desse certo... Mas tu conseguiu acabar com isto.

Pensei em ponderar sua opinião e discutir mais uma vez. Mas as lágrimas que me tomaram conta durante poucas horas atrás estavam querendo voltar a deslizar pela minha cara e eu não podia chorar na frente dela. Ela tinha razão, eu acabei com tudo. Mais uma vez, eu havia acabado com tudo.

Fui pra casa, tomei um banho quente e me deitei na nossa cama. Foi impossível não reconhecer seu cheiro adorável e lembrar-me do quão bem ela cuidara do nosso filho, mesmo sem saber que formato de rostinho ele teria, quanto pesaria ao certo ou de que cor seriam seus cabelos... Ela era incrível e eu a botei fora, assim como fiz com meu filho. Pensando nisto acabei dormindo, sentindo um peso enorme nas minhas costas.


Fui acordado com um telefonema da mãe da Izabel, me falando sobre o enterro do bebê. Seria ainda no turno da manhã e estava frio. E tinha neve. E eu estava arrasado em ter que participar disto.

Certamente os bebês que morrem antes mesmo de nascer devem ir para o céu. Devem ser anjos que vem para a terra iluminar a vida dos seres humanos desastrados e terríveis pra ver se eles aprendem alguma coisa sobre a vida e depois voltam para o seu lar, para compartilhar a felicidade que lhe é merecida.


Quando vi aqueles homens de preto trazendo aquele pequeno caixão branco foi impossível não refletir sobre o motivo de ele ter partido tão cedo. Minha teoria sobre pra onde ele deveria estar indo estava muito convicta, mas o que de fato eu tinha que aprender com isto? Que eu devia ter amado minha esposa, que eu devia ter dado a atenção (e toda a razão nas brigas) pra ela? Ou que eu simplesmente deveria deixar de ser tão fracassado e inútil no mundo como eu sou?

Cara, ver aquele minúsculo caixão me cortou a alma, se é que eu sou digno de uma. As pessoas vestindo preto (grande parte da família dela) estavam arrasadas, soluçavam e tentavam achar forças pra superar aquela situação. E eu, vendo aqueles homens de preto se aproximarem do padre, não me contive como sempre consegui fazer. Chorei. Desabei. E me perdi.


Nevou muito naquela manhã. Ter que enterrar meus pais havia sido um inferno há 4 anos atrás. E agora, enterrar meu pequeno Brian, Gonzalo, Enrique ou seja lá qual seria o nome dele, era uma tortura mental inestimável. E ainda tinha a Izabel...

Ela ficou o tempo todo abraçada em sua mãe e virou o rosto na hora que viu o caixão. Desmaiou. Voltou. E conseguiu abraçar o pequeno caixão antes de ele se aprofundar de vez em terras literalmente desconhecidas. Enquanto os coveiros jogavam a terra misturada com neve em cima do caixão, Iza conseguiu deixar uma rosa branca e lágrimas descontroladas por entre as pazadas que eles colocavam. E eu me contive de longe, mantendo o caráter indigno que eu mantive durante todo este tempo para/com aquela que era minha esposa. Eu era o monstro ao qual ela se referia na noite anterior e não tinha como tirar a sua razão. Simplesmente pelo fato de que eu havia permitido que minha família escapasse das minhas mãos e fosse levemente abraçada por aquele dia gelado.

Quando todos saíram pude por fim me ajoelhar sob a terra e chorar pela última vez pelas minhas perdas e pela minha burrice. Eu queria ser visto como um cara frio, como um cara sério e respeitado. Enquanto eu tentava moldar um pai de família, fui a perdendo. E isto era o que mais me doía. O terrível sentimento da perda.


Após uma tarde repleta de lamentações e tristeza, resolvi por fim sair daquele lugar. Meu relógio marcava 17h23. E já era noite em Madrid.

Saí vagando pela cidade com minha cara inchada e com meus músculos rangendo pelo frio. Os bares da capital espanhola estavam fechados, mas consegui encontrar um café aberto. Entrei e me obriguei a tomar um chocolate quente. A lareira estava acesa e pude ter todo o conforto necessário para que chegasse a uma das conclusões mais importantes da minha vida.

O líquido quente que eu bebia era agradabilíssimo. O calor do fogo me deixava estarrecidamente confortável e aquecido naquele ambiente fechado e de boa aparência. Mas e lá fora, o que me esperava? A neve, o gelo, o frio. Era lá o meu lugar, no relento, sentindo por dentro e por fora como é ser uma pessoa fria.

Fui assim durante toda a gestação da Izabel, porque agora tinha que ser tão diferente e emocional? A conclusão que aquele local me deu era simples: o inferno, sem sombra de dúvidas, deve ser gelado. E extremamente gelado para quem merecê-lo mais.

Larguei minha caneca decorada, paguei o chocolate e saí correndo em direção ao lago que costumava visitar junto com meu pai quando eu era criança. Ele sim era um homem de verdade, com poucas falhas. Eu só não queria ser tão bonzinho com as pessoas que nem ele era. Não queria que me zoassem que nem faziam com ele, chamando-o de idiota por ser tão afetivo e tão carinhoso com todo mundo. Ele morreu em um acidente de carro com minha mãe e desde então quis ser melhor do que ele era... E querendo ser a parte perfeita do meu pai, tornei-me nesta imundícia, que nem de longe se parece com ele.

A serração cobria quase que por completo aquele lago localizado no centro da capital espanhola. Ahh, a Plaza Espanha!!! Era linda, rodeada de grandes prédios e estatuetas importantes… E era naquele pequeno lago. localizado no centro da praça, que meu pai fingia que iria me atirar caso eu incomodasse.

Sem pensar muito, tirei o casaco e senti o vento frio querer rasgar a minha pele. Em seguida tirei o suéter e a manta que me cobria o pescoço. Quando menos pude esperar eu já estava somente de cueca e meias brancas em pleno inverno europeu. A cada peça de roupa que fora retirada, eu tive mais certeza de que minha existência no mundo havia sido inútil e por isso, eu merecia um final tranquilo e gelado, como deve ser no inferno.

Só pra avisar que, dependendo do dia, poderão sair capítulos extras, além dos previstos para serem postados nas quartas e domingos às 20h. Os capítulos darão prosseguimento à história mesmo, não são bônus... Obrigado a todos e bom final de semana!